sábado, 16 de outubro de 2010

Fora de linha

Na última vez que vocês estiveram aqui eu falei do homem de preto. Ele tinha um violão nas costas; entrou, tomou um trago e me contou uma história que era mais ou menos assim:

“Ele veio pra mim em 88. A lataria, amassada; os pneus, gastos. Assentos desconfortáveis, volante duro. Motor barulhento, escapamento sujo. Precisava de alinhamento, calibração, troca de óleo. Até hoje ainda recebe uns reparos.”

“O funileiro fez milagres, o borracheiro recauchutou as rodas, trocou por outras. Hoje a pintura preta perolada fica vistosa e impecável dia ou noite, mas tudo ainda está lá, e eu sei. E essa é a melhor parte. Olho pra ele ali e digo que não se fazem mais desses. Cada arranhão, cada amasso, cada buraco no estofamento e cada ruído irritante me contou um pouco da história dele e eu soube que o queria no ato. Ele me dizia que era velho, antiquado, mas ainda dava para o gasto e que se eu entrasse ali e ficasse atrás do volante, mesmo na espuma poeirenta que tinha virado o banco do motorista ele seria meu destino e lar e seu baú guardaria os segredos que quero tanto esconder e as lembranças que quero esquecer. E eu pensei, Droga eu sou a porra de um caracol, que animalzinho sortudo. Vi muitos durante minha vida toda e tinha percebido que o peso que ele carrega é muito pouco para o que ele tem em troca. Eu não sentiria mais incerteza sobre onde iria parar e nos momentos em que eu quisesse fugir sem ter pra onde ir ele iria comigo e em qualquer acostamento ele seria minha casa. O preço que eu pago são as revisões, restaurações e abastecimentos. Gasolina, óleo, água. Velas, pastilhas de freio. Parece receita de bolo. Mas o que eu tenho de mais importante é minha vida com ele. Ele mudou minha vida e eu mudei a minha pra estar com ele. Por aquele carro eu erro, eu não me estabeleço, não tenho outra casa. Por ele eu toco esse violão nas cidades e durmo sentado a maioria das noites. Tenho meus casos, você me entende. Uma cama quentinha e companhia sempre caem bem. Mas é ele, com o rádio, que me acompanha na voz do B.B. King, Rick Derringer ou Gary Moore, que me acalenta das minhas desilusões como se fosse Billie Holiday e que, quando não há nada mais a dizer, apenas ronca.”

3 comentários:

  1. Eu digo obrigado, muito obrigado, taverneiro, por essa história linda que você contou hoje. Não sou como você, que tem sempre palavras que se encaixam de um jeito que é só seu. só posso dizer que estar aqui hoje me fortaleceu como sempre, mas de um jeito diferente do normal.
    Não fazem mais caras como você, velho amigo.

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  2. Obrigado a você, Malveira. É sempre bom receber os elogios de um amigo.

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