sábado, 31 de julho de 2010

Papéis sob um abajur

Atrás do vidro embaçado da porta um homem entra no bar.

Seria condizente com sua decadência de espírito se esse fosse uma daquelas espeluncas sujas, mas não é. O roteiro da sua vida é simplório, nada digno de uma nota quanto mais de uma resenha na sessão de crítica: a atmosfera não é pungente; suas atitudes não parecem deliberadas ou predestinadas, parecem aleatórias e sem importância cósmica ou vulgar. Ele é mais um figurante em cena, ele, que entra naquele bar bem iluminado no fim da rua escura e úmida no fim do mundo. Ele é um romancista miserável e patético com sua bolsa de couro velha debaixo do braço, uma figura até então tão inexpressiva que não causa riso ou choro de outrem a sua condição. Vida e obra insípidas.

Ele procurou um lugar iluminado. Encontrou num canto reservado uma mesa com abajur; lâmpadas dispostas nas paredes próximas à aresta comum tingiam a madeira da mesa e o tecido do estofado de cores aconchegantes. Ele cruzou o espaço interno e o solado de seus sapatos estalou contra o assoalho, mas ninguém lhe dirigiu qualquer interesse nem curiosidade, nem mesmo quando tirou seus instrumentos: um maço surrado de folhas amareladas, uma caneta tinteiro e um par de óculos de leitura empenado. A figura jocosa que visse aquele homenzinho ridículo em meio à papelada esparramada sobre a mesa, com uma mão a puxar o cabelo que disfarçava a calvície acima das têmporas grisalhas, a olhar em desalento cada página, teria a imagem tragicômica do Papai Noel fatigado, desprovido de sua longa e bonita barba branca, tornada cinzenta pelo descuido e talvez pelo vício.

O homenzinho de ombros encolhidos não passou a noite, mas se tornou cada vez mais frequente, sempre naquele seu cantinho reservado, o cantinho do escritor, até que sua assiduidade se tornasse como um relógio. A maravilha e o encanto pareceram se dissipar. Pareceram apenas. Nunca é assim no fim do mundo e ele ainda terá alguma história para contar sobre o balcão. Você pode escrever isso.

sábado, 24 de julho de 2010

Sobre Homens, Mulheres e Vinhos: a amigos e amores

Acredito que se sucede com as pessoas interessantes que encontramos e com que convivemos ao longo da vida como aos bons vinhos:

Solo de preciosas sementes com esmero semeado;
Pensamento e sensibilidade, das emaranhadas videiras;
Colhidos no momento propício, nunca atrasado;
Hão de durar vidas inteiras;

Vêm o gosto apurar só após a dita flor da idade;
Às melhores seivas os frascos mais elegantes;
Com rótulos distintos, dignos de sua maturidade;

Para aqueles ainda por conhecer esse velho amigo novo e
Para aqueles que desse desejo e dessa vocação já fazem parte
Eu vos digo que da minha vida fazem obra de arte

Vocês estão guardados no meu coração
E sabem quem são.

sábado, 10 de julho de 2010

Uma noite dessas

Certa vez, três homens sentaram lado a lado nesse balcão e me fizeram três perguntas:

O homenzinho desesperadamente debochado pediu Black Label à moda cowboy e inclinou um lado do corpo sobre a madeira como se tivesse um berro de um palmo de cano metido no cós da frente. Passou a mão no cabelo muito curto e no rosto um pouco áspero e estendeu para pegar a garrafa. Soltando um suspiro, algo mais como um sopro, me olhou nos olhos e disse que a deixasse onde estava com um aceno de cabeça de quem pede um pouco de compreensão pelo dia difícil.

Então chegou o encapotado classudo com ar ainda mais debochado pediu um maço de cigarro importado e gin com tônica. Eles se olharam e se reconheceram sem nunca terem se visto antes. Um sorriso com um cigarro entre os lábios teve como resposta um copo levantado. Um brinde às pequenas conquistas, muitas desgraças e modestas reparações mesquinhas da vida de cada um que nunca iriam compartilhar em palavras. Enfim, se tornaram amigos naquele instante.

Por último, um homem grisalho, velho em todas as acepções da palavra, se sentou ruidosamente no banco ao lado o segundo, olhou para eles por baixo das longas e grossas sobrancelhas como um mestre marcial, um sábio, um mago ou algo que o valha. Apontou a garrafa de José Cuervo Blanco e perguntou se voltando pra mim enquanto eu o servia:

“Você já se sentiu tão apático que não teria apetite a menos que caçasse e matasse você mesmo sua comida? Digo, não quando não é qualquer coisa que serve, rapaz, quando você precisa consumir um pouco de vida de verdade pra sentir que ainda tem alguma dentro de você. Em dias assim tudo o que eu faço é beber."
Em seguida, vi a peça de mogno atrás da qual eu estava se tornar uma mesa de carteado em que os homens jogavam com suas amarguras como se fossem reis e damas. Eu aparentemente era a mesa.

O mais jovem fez uma concessão à experiência do homem e bateu em alguma coisa que trazia na cintura acima do bolso da calça jeans: "Você já se sentiu tão miserável e egoísta que pensasse que qualquer pessoa importante na sua vida só lamentaria sua morte pela perda dos benefícios que você trazia? Digo, amigo, tem coisas que você faz, e elas falam pra pessoas mais sobre você do que quem você é. Quero dizer, quem diabos vale alguma coisa por si só?" O encapotado alargou o sorriso e tragou o cigarro e falou como quem blefa desde sempre: "Você já se sentiu tão..."

As apostas eram altas, cada um devia ter uma fortuna, má fortuna, em fichas dessa natureza. As partidas se seguiram noite adentro. E quando era hora de ir eles se despediram discretamente, mas com intimidade velada maior do que aqueles bêbados comuns que saem por aí abraçados se dizendo amigos e irmãos de todo mundo. O ronco de um motor como há anos não se fabrica se fez ouvir do lado de fora. O encapotado fez sinal para uma condução e quando nenhuma parou nesse fim do(s) mundo(s) ele levantou as abas do capote e saiu encolhido. O velho pagou pela garrafa e a levou consigo. Desamarrou o cachorro que havia deixado de fora naquela noite quente e foi andando. E eu? Eu tenho a impressão de que vou vê-los de novo.