sábado, 16 de outubro de 2010

Pai e Treinador

Um dia um homem sentou num banco junto ao balcão, virou sua tequila e um gole de cerveja e me disse enquanto abria as mãos calejadas e relaxava os ombros doídos, numa anunciação profética até, depois um dia de trabalho braçal: "Deus é Pai."

“Ele não te abraça e te faz sentir protegido. Isso ele faz pras suas irmãs, e te diz pra seguir o exemplo e você diz, Sim, senhor. Ele diz, Levante a cabeça e mantenha o respeito e você, Sim, senhor. Cuide deles, Sim, senhor. Mas ele não é frio ou indiferente, é o jeito d'Ele e se você for esperto vai entender quando Ele passar o braço pelo teu ombro te fizer sentar e te mostrar uma caneca de café ou um prato de sopa depois de uma noite difícil.”

“Ele é bom, mas um dia te bota pra fora de casa e te manda cuidar da vida. Ele não te adula, Ele não te põe no colo mais quando você já é grandinho o bastante pra conhecer o mundo por si só.”

“Aí Ele te manda subir lá em cima e dar o sangue e não estragar a coisa toda. Enfia nos teus ouvidos aquelas malditas ordens que você sempre desobedece e joga na sua cara o quanto você é teimoso, burro, pequeno e desorientado. Você sobe e perde de vista tudo o mais, só consegue pensar se é que isso é pensar: ‘mais um, mais um, cai, cai, cai agora, merda... como dói’. Só pensa em como não deixar transparecer a dor e ainda cutucar a onça. Você tem que cantar de galo, tem que provocar, você não tem jeito. Parece outra pessoa falando na sua cabeça entre um latejar e outro das têmporas. Você já está sem forças, quer pedir água, se isso quer dizer desistir que seja. Você só tem sede. Mas não tem ninguém ali pra jogar a toalha por você, você está sozinho agora. Mas quando você vai pras cordas, você vê Ele ali. Parece dizer: ‘Você tem que cantar de galo, tem que provocar, você não tem jeito’. Você pensa que já teve essa sensação.”

“E quando acabar Ele não vai te levar pro vestiário e cuidar dos seus hematomas ou supercílio cortado. Não vai ver inchaços nem costelas quebradas. Quem vai te levar são as pessoas da arquibancada que não te conhecem tão de perto, mas ainda assim se preocupam, te amam. E você as ama, aquelas cinco ou seis pobres almas que ficam ali por você. Ele vai ficar ali e esperar você voltar. Ele é o Treinador de um lutador bruto e por pior que seja a sua postura e por mais que seu queixo e plexo sejam vulneráveis Ele não desiste de você. Ele fica ali em surdina esperando o dia que você vai mostrar que sua força e teimosia vão vencer no Mundo. Um soco por vez.”

Amém.

Fora de linha

Na última vez que vocês estiveram aqui eu falei do homem de preto. Ele tinha um violão nas costas; entrou, tomou um trago e me contou uma história que era mais ou menos assim:

“Ele veio pra mim em 88. A lataria, amassada; os pneus, gastos. Assentos desconfortáveis, volante duro. Motor barulhento, escapamento sujo. Precisava de alinhamento, calibração, troca de óleo. Até hoje ainda recebe uns reparos.”

“O funileiro fez milagres, o borracheiro recauchutou as rodas, trocou por outras. Hoje a pintura preta perolada fica vistosa e impecável dia ou noite, mas tudo ainda está lá, e eu sei. E essa é a melhor parte. Olho pra ele ali e digo que não se fazem mais desses. Cada arranhão, cada amasso, cada buraco no estofamento e cada ruído irritante me contou um pouco da história dele e eu soube que o queria no ato. Ele me dizia que era velho, antiquado, mas ainda dava para o gasto e que se eu entrasse ali e ficasse atrás do volante, mesmo na espuma poeirenta que tinha virado o banco do motorista ele seria meu destino e lar e seu baú guardaria os segredos que quero tanto esconder e as lembranças que quero esquecer. E eu pensei, Droga eu sou a porra de um caracol, que animalzinho sortudo. Vi muitos durante minha vida toda e tinha percebido que o peso que ele carrega é muito pouco para o que ele tem em troca. Eu não sentiria mais incerteza sobre onde iria parar e nos momentos em que eu quisesse fugir sem ter pra onde ir ele iria comigo e em qualquer acostamento ele seria minha casa. O preço que eu pago são as revisões, restaurações e abastecimentos. Gasolina, óleo, água. Velas, pastilhas de freio. Parece receita de bolo. Mas o que eu tenho de mais importante é minha vida com ele. Ele mudou minha vida e eu mudei a minha pra estar com ele. Por aquele carro eu erro, eu não me estabeleço, não tenho outra casa. Por ele eu toco esse violão nas cidades e durmo sentado a maioria das noites. Tenho meus casos, você me entende. Uma cama quentinha e companhia sempre caem bem. Mas é ele, com o rádio, que me acompanha na voz do B.B. King, Rick Derringer ou Gary Moore, que me acalenta das minhas desilusões como se fosse Billie Holiday e que, quando não há nada mais a dizer, apenas ronca.”

sábado, 9 de outubro de 2010

Procura-se modelos antigos

Might be the devil playing a little game
I´m so tired of this old rhyme...


O lugar estava lotado e o sino não parava de tocar. Foi quando eu vi um carro de ébano reluzente parar em frente ao bar; fumaça saía do motor pela tela do painel como se saísse das narinas de um animal robusto, empertigado e altivo. Com um relinchar apoteótico ele silenciou; um vaqueiro desceu e fez a volta para abrir a porta para o passageiro: uma caixa preta como os cabelos e os olhos da Morte, cuja forma já anunciava o conteúdo sem mistério. Reclinou na minha vitrine, próximo a entrada do metrô com o instrumento nas mãos, tocando acordes e dedilhados. Ele fazia algum sucesso.

Quando já tinha visto todos os clientes irem embora e oferecem moedas e notas ao artista na soleira da porta era hora de fechar. Fui até a porta e vi o homem dentro de uma capa no chão abraçado ao velho Resonante com o chapéu de aba larga caído nos olhos. Com um chute suave na caixa do violão e um convite irrecusável com uma garrafa meio cheia de Jack Daniels – eu já esbanjava otimismo – ele acordou e entrou. Sentamos, jogamos e bebemos. Ele passou a madrugada. Pegou um quarto para descansar os ossos doídos acordou cedo, pôs suas seis cordas nas costas e partiu. A história que ele me contou vocês vão saber outra noite.


I need a litle something to ease the things
Oh, Lord, have a little mercy on the sugar cane

Faça sol, faça chuva

Dias mal dormidos e noites mal vividas; aqui estou eu de novo caminhando de volta ao balcão. Asfalto molhado reflete o brilho opaco dos faróis e postes. À luz da lua os prédios parecem lápides de grandes túmulos coletivos para pessoas mortas para a vida noturna. Abro a porta, o sino toca, acendo as luzes e tudo ganha um brilho quente e aconchegante. Com um movimento distraído faço luz e caminho todo soberano e solitário num mundo luminoso. Vejo as prateleiras: Jack Daniels, Johnnie Walker Blue, Blue Label, Grand Old Parr. Guinness, Heineken, Stella Artois, Beck's. Balcão, copos, pints. Mesas, bancos, cadeiras. Madeira, vidro e líquidos. E eu vejo tudo e tudo é bom. Minha pequena brincadeira de deus de todas as noites.

Vou lavar, arrumar, varrer, lustrar. Logo a vida vai começar chegar.